Living Colour: eu estava lá

Living Colour: eu estava lá

Por Luis Fernando R. Borges – Coxa

Mas não no Rock in Rio.
Fui em outros dois shows. Na real, fui só em um. Mas o outro é como se eu estivesse lá.
Estando ou não, foram dois dos shows mais marcantes que eu presenciei.

            Em ordem cronológica, o primeiro foi o do Hollywood Rock de 1992, a primeira vinda deles ao Brasil. Estavam em seu auge de popularidade. Haviam lançado dois discos, os de maior sucesso, Vivid (1988) e Time’s Up (1990). Contribuiu para essa popularidade a criação de um saco de gatos denominado funk-metal, que serviu para juntar bandas desprovidas de qualquer semelhança mais significativa entre elas, a exemplo do Faith No More, que tinha vindo ao Rock in Rio de 1991, e o Red Hot Chili Peppers, que viria ao Hollywood Rock de 1993. Até mesmo bandas como o Primus foi enfiada nesse saco de gatos, juntamente com outros nomes bem legais como o Mucky Pup e os holandeses do Urban Dance Squad, entre vários outros. Mas, antes mesmo do saco de gatos estourar, ele foi picotado pela tesoura do grunge. Escaparam do anonimato o RHCP, que passou a fazer ainda mais sucesso, o Faith No More, que passou a explorar outras possibilidades a partir do Angel Dust (1992), e o Primus, que seguiu seu caminho sem dar muita bola. Sem falar no Rage Against the Machine, que lançou seu primeiro disco justamente no ano da graça de 1992 do grunge e ainda assim conseguiu se criar.

            Pois então, o Living Colour estava em seu auge quando do show de janeiro de 1992, a reboque do sucesso de seus dois primeiros discos, pegando o elevador do funk-metal e ainda não descendo ladeira abaixo por conta do grunge, que então se resumia ao Nirvana, que por sua vez se resumia a Smells Like Teen Spirit. O grunge sequer existia enquanto rótulo. Esse show foi transmitido ao vivo pela televisão e eu tratei de gravar com o videocassete. Sim, eu não estava lá, mas assisti tantas vezes que é como se eu estivesse. De deixar transparente a pobre fita VHS, que eu ainda tenho, mas que hoje está devidamente aposentada graças ao YouTube, em que esse show pode também ser encontrado.

            No ano anterior, também gravei da televisão alguns videoclipes, como os de Type, Elvis is Dead e Love Rears its Ugly Head. E comprei em fita cassete o Time’s Up, que continha essas músicas. Ainda não tinha o Vivid, que eu gravaria em fita logo em seguida, mas conhecia suas músicas mais célebres, como é o caso de Cult of Personality, Glamour Boys e Open Letter (to a Landlord).

            Enfim, eu já manjava do som do Living Colour. Um som que combinava rock bem pesado com toda a tradição da black music (todos os seus 4 integrantes são negros), não se restringindo apenas ao funk e ao soul, mas também ao próprio jazz, com direito a uso de acordes dissonantes e tudo mais, que casavam perfeitamente com guitarras thrash metal, que passaram a se fazer presentes com mais intensidade a partir do Time’s Up. Trata-se daquele tipo de banda em que todos são monstros em seus respectivos instrumentos – incluindo aí o vocal. Antes do show, ficava imaginando se eles iriam conseguir reproduzir aquilo que faziam nos discos, e de que forma isso seria feito.

            Resposta: não conseguiram. Fizeram mais. Não a ponto de descaracterizar as músicas, mas não tocaram igual ao que se ouve nos discos. Ficou tudo ainda mais pesado e com mais detalhes. O show realçou a potência vocal do Corey Glover, com aquela empostação de um Tim Maia e o drive de um James Hetfield com direito a alguns agudos gritados no meio. A quebradeira da bateria do William Calhoun, quebradeira tanto em termos de peso quanto de ritmos sincopados. As pelo menos 5 formas diferentes com que o Vernon Reid segura a palheta dependendo do que ele quer fazer com a guitarra, obviamente auxiliado por uma montoeira de pedais, mas claramente arrancando “no braço” várias daquelas microfonias e harmônicos, que aparecem em profusão no show, muito mais do que no disco. Ainda que sem palheta, o mesmo vale para o baixista Doug Wimbish, que fazia a sua estreia na banda, substituindo Muzz Skillings, o único músico que não era monstro. Um ótimo baixista, mas não anormal. O show marcou assim a formação completa em monstruosidade, o que de quebra ainda não atrapalhava nada em termos de peso e performance de palco.

            Depois desse show, a banda lançou mais um disco, Stain (1993), contendo ainda mais peso e recursos sonoros do que no show do Hollywood Rock, mas aí os efeitos do grunge já se faziam sentir, não apenas em termos de queda de popularidade, mas também pelo som, não só pelo peso, mas também por conter melodias mais sombrias e menos solares do que nos discos anteriores. Fenômeno semelhante aconteceu com outras bandas, a exemplo do Rush, outra “banda de músicos” a juntar peso e técnica, que no mesmo ano de 1993 lançou o disco Counterparts. Confesso que não curti muito esses discos quando de seus lançamentos. Não que eu tenha achado ruins, longe disso, mas considerei inferiores aos discos que ambas as bandas haviam soltado em tempos anteriores. Mas com o tempo as coisas se inverteram.

            E em 1995 o Living Colour acabou.

            E em 2001 eles retomaram os trabalhos, com a mesma formação estreada naquele Hollywood Rock e que segue até hoje. Foi um retorno tímido, sem maiores alardes. Foram lançar um disco só em 2003, o Collideoscope. E foi com esse disco que eles voltaram ao Brasil, em 2004. E pela primeira vez desembarcaram em Porto Alegre, para um show no Gigantinho. O show foi promovido pela Rádio Atlântida FM. Ou melhor, ficou de ser. Para ajudar, o disco sequer tinha sido lançado no país. E havia aquele vácuo provocado pelo grunge, que a banda nunca conseguiu transpor – se é que chegou a fazer questão. Como trazer o grupo para as novas gerações, para os anos 2000, e tirá-lo daquela pré-histórica primeira metade dos anos 1990, pré-histórica e pré-internet?

            A resposta estava no show. Foi em 24 de abril. Não lembrava a data, mas internet serve pra isso. O Gigantinho é um ginásio em que cabem umas 15 mil pessoas. Se havia mil era muito. Praticamente todas essas mil pessoas estavam na pista. Nas arquibancadas, havia o equivalente a uma fatia de bolo, não necessariamente grossa. O restante das arquibancadas estava vazio. E mesmo na pista as pessoas não estavam espremidas. Havia bastante espaço entre uma pessoa e outra. Tanto que consegui ir bem para a frente do palco. E poderia circular de um lado para outro. Ou melhor, só para um lado. Em frente ao lado direito do palco era o único lugar do ginásio inteiro em que era possível localizar algo possível de ser definido como uma aglomeração. É onde sempre fica o Vernon Reid, e ali todos os guitarristas de Porto Alegre estavam amontoados para observar as técnicas do homem. Ali sim não passava uma mosca. De resto, era possível escolher onde ficar.

            Nem mesmo tendo como show de abertura o TNT, aliás outra banda que estava retomando os trabalhos, a Atlântida conseguiu promover o show. E o resultado foi peculiar. Nunca tinha visto algum show em que quase não havia gente com menos de 30 anos. Desde orquestras de música erudita até cantores da velha guarda do samba, sempre tem molequinho assistindo às apresentações. Eu tinha 28 anos e tinha dificuldade de encontrar gente mais nova do que eu. Com muito custo, vi alguém que aparentava ter uns 25 anos. Nada menos do que isso.

            Diante de cenário tão desolador, de arquibancadas vazias e espaços na pista, da presença de mil pessoas em um lugar que comporta 15 vezes mais do que isso e que daqui a um mês vai lotar com o Luccas Neto, uma banda como o Living Colour poderia fazer aquele show burocrático, pra cumprir tabela, no piloto automático. Ou então dar meia volta e ir embora mesmo. Mas não, os caras tocaram como se tivesse gente saindo pela janela, pendurada no teto e do lado de fora. E aí entra em cena outra peculiaridade. O público era pequeno, mas todos conheciam todas as músicas e cantavam todas do início ao fim, a plenos pulmões e pulando como molequinho. Desta feita a banda foi um pouco mais fiel às gravações originais, mas o virtuosismo comia solto, novamente sem perda de peso e de performance de palco. E até o vazio das arquibancadas acabou funcionando a favor. No final do show, o Corey Glover saiu do palco pelo lado esquerdo, transitou pela metade correspondente das arquibancadas e, após essa meia-volta olímpica, voltou pelos fundos da pista em direção ao palco, circulando pelo meio de toda a plateia com o microfone sem fio. Fechamento de show com chave de ouro.

            Lá se vão quase 20 anos, e os caras seguem firmes e fortes. E agora vieram parar no Rock in Rio. E com o reforço da guitarra do Steve Vai. Como foi? Vai procurar no YouTube. Aproveita e vai atrás dos discos também, e de outros shows, pré-históricos ou não, pré-internet ou não. Você ainda está aqui lendo este texto?

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