Virando o disco dos bailes dos anos 60

Virando o disco dos bailes dos anos 60

Por Luis Fernando R. Borges – Coxa

Neste primeiro outubro pós-pandemia, me vem à mente algumas memórias remotas. Remotas mesmo, não no sentido pandêmico da coisa. Memórias de acontecimentos presenciais, não vivenciados por meio de alguma plataforma de sala virtual. E remotas em um sentido também impreciso. Lembro mais ou menos vagamente de, nesta época do ano e em seus dias lindos de sol e calor (a exemplo deste de 11 de outubro de 2022), ter vivenciado aqui em Frederico Westphalen, mais precisamente no Clube Harmonia, algumas daquelas festas dos anos 60. Que na real têm mais a ver com a segunda metade dos anos 50, quando do surgimento do rock, aquele dos primórdios que hoje chamamos de rockabilly, ou no máximo com a primeira metade dos anos 60, quando o rock ainda era essencialmente um blues acelerado, sem ter passado por todos os desdobramentos que o aguardavam na sequência.

            Nessas festas, temos uma típica nostalgia seletiva, em que fica só a música em si e os estereótipos. Se quando de seu surgimento o rock trazia consigo toda uma carga de subversão e transgressão, os bailes dos anos 60 representam um belo momento de diversão em família (brasileira ou não), uma passarela para o desfile de vestidos de bolinha e jaquetas de couro, compradas especialmente para o momento ou desencavadas do guarda-roupa dos bisavós. O cheiro de naftalina no ar se mistura à fumaça das motocicletas e ao aroma da cuba-libre. Tudo embalado por uma trilha sonora composta de músicas cujo caráter transgressor inicial não tardou a ser diluído pela passagem do tempo, além daquelas que mesmo em sua origem nunca foram exatamente subversivas.

            E aí temos um problema. Se o repertório do rockabillly fosse hipoteticamente transformado em um disco de vinil, poderíamos dizer que nas festas dos anos 60 é utilizado apenas o lado A. Portanto, é chegado o momento de virar o disco.

            Uma parte desse lado B das festas dos anos 60 poderia ser ocupada pelos The Sonics, banda norte-americana surgida na primeira metade dos anos 60 na mesma fornada dos Beatles e dos Beach Boys. A estrutura das músicas é aquela bem convencional do rockabilly, mas havia ali uma clara tentativa de fazer um som mais pesado do que o dos seus contemporâneos. Era notório que os caras tinham algum problema. Ainda não havia pedais de distorção? Sem problemas, é só furar as caixas de som e botar tudo no volume máximo. O detalhe é que isso distorcia não apenas o som da guitarra, mas todos os instrumentos, sobretudo a voz do vocalista Gerry Roslie, que tratava de se esgoelar em frente ao microfone. E, não bastasse a distorção sonora, o peso se estendia também às letras das músicas, de títulos sobre temas edificantes como “Psycho” e “Strychnine” e cidadãos de bem como “The Hustler” (O Traficante) e “The Witch” (A Bruxa). A própria “Cinderella” aqui não é exatamente uma personagem de contos de fadas. Sem falar em “He’s Waitin’” (Ele Está Esperando). Sabem que é Ele? É Ele mesmo…

            Essas musiquinhas dos Sonics não fizeram sucesso algum quando do lançamento de seus discos, e a banda acabou ainda na década de 60. Mas a sua influência se estendeu pelas décadas seguintes, quando já havia tecnologias específicas de distorção do som. Essa influência é perceptível no hard rock e no metal, no pré-punk dos Stooges e do MC5 de fins dos anos 60, e obviamente no próprio punk dos anos 70. Mas, já que o assunto aqui é festas dos anos 60, vale destacar a retomada do rockabilly no início dos anos 80, por meio de bandas como os Stray Cats, e sobretudo a sua vertente mais pesada e insana, o psychobilly, cujo principal representante é The Cramps, banda liderada pelo casal Lux Interior e Poison Ivy, respectivamente vocalista e guitarrista, fãs confessos dos Sonics. Turbinando o rockabilly com peso e microfonia, filmes de terror e cultura trash em geral, resultando em um repertório sombrio e humorado ao mesmo tempo, os Cramps sozinhos renderiam um bailinho inteiro, assim como outras bandas do estilo, como The Meteors e Nekromantix, entre tantas outras.

            O detalhe é que os mais de 10 discos dos Cramps lançados ao longo de uma carreira de mais de três décadas (interrompida pela morte de Lux, em fevereiro de 2009, aos 62 anos) trazem não apenas o repertório autoral da banda, mas também um verdadeiro lado B do rockabilly dos anos 50 e 60. Em meio a singelas canções próprias como “Human Fly”, “Garbageman”, Can your Pussy do the Dog?” e “Bikini Girls with Machine Guns”, lançadas em discos de nomes não menos sensíveis como “Smell of Female”, “Bad Music for Bad People”, “Stay Sick” e Look Mom, No Head”, podem ser encontradas delicadas pérolas do cancioneiro rockabilly, a exemplo de “She Said”, “The Crusher”, “Goo Goo Muck”, “Uranium Rock”, “I Can’t Hardly Stand It”, “The Way I Walk” e a única música conhecida desse repertório, “Surfin’ Bird”, dos Trashmen, também gravada pelos Ramones. As versões originais de todas essas músicas foram compiladas na coletânea de 6 volumes “Born Bad” (1986), promovida pelo próprio casal fundador dos Cramps.

Se não fosse essa coletânea, até hoje eu juraria que essas músicas eram todas dos Cramps – afora “Surfin’ Bird”, lógico. Mas não, são da mesma época das músicas inofensivas do lado A dos bailes dos anos 60. E a coletânea não se limita a músicas regravadas pelos Cramps, trazendo também outros achados, como “Hot Lips Baby”, “Mini-Skirt Blues”, “Devil with the Blue Dress On” e “Green Mosquito”, além de “Can your Hossie do the Dog?” (fonte de inspiração da música autoral dos Cramps citada anteriormente) e duas daquelas músicas dos Sonics – “Strychnine” e “He’s Waitin’”. A coletânea abre espaço até mesmo para a revista Mad, com Alfred E. Neuman em personagem comparecendo com a quase autoexplicativa “It’s a Gas”

            Enfim, opções para fazer uma festa dos anos 60 sem precisar fazer uso do repertório de sempre é o que não falta. Fica a dica, Clube Harmonia.

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