O Rock e o Tempo
Por Mateus Dagios
“How music changes through the years.”
O caríssimo Fuga, um gaulês irredutível na resistência do rock em nossa região, convidou-me para escrever uma crônica quinzenal sobre música. Fuga é um apaixonado por música, que procura outros apaixonados para reuni-los em confraria. Aceitei o convite. Me entusiasma a ideia de escrever para outros desterrados sonoros residentes na hostil paisagem sonora do interior do Rio Grande do Sul, pois é fácil amar o rock em Nova York, Londres, São Paulo ou Buenos Aires, mas amar o rock no norte do Rio Grande do Sul é sentir-se, usando uma fraseologia do rock gaúcho, “longe das demais das capitais”.
A ideia desse espaço quinzenal é trazer relações entre o rock e a história, abordando como determinadas canções são testemunhas de ímpetos e tensões geracionais. Uma música traz o tempo consigo. Bob Dylan quando cantava o verso de Like a Rolling Stone em 1965 “Do you want to make a deal?” mostrava o desconforto de uma América conservadora que teria que fazer um acordo entre jovens e velhos para existir como nação, acordo que não foi fácil e que talvez nunca tenha existido. Uma canção que era sobre a sensação de perda: “with no direction home”, o verso ecoava no coração de um país partido pela Guerra do Vietnã (1955-1975).
O embate geracional sempre foi um dos temas do rock e esteve nas canções. O estilo nasceu à medida que a própria ideia de juventude se consolidava como um público-alvo, com roupas, formas e modos de agir. No filme A Hard Day’s Night (1965), os quatro rapazes de Liverpool ou estão sendo perseguidos pelas fãs ou estão entrando em confronto com os velhos. O rock passava a ser sinônimo de cultura jovem.
Os jovens não queriam ser como os pais, e isso tanto nos Estados Unidos de 1960, na França no incendiário Maio de 68 ou no Brasil da década de 1970. Elis Regina em 1976 cantava a letra de Belchior, que traduzia a angústia geracional com as figuras paternas: “Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”.
A música de Belchior trazia o desconforto de um país no qual no qual a liberdade era vigiada: “Por isso cuidado meu bem há perigo na esquina”. Sensação incômoda que fazia um jovem talentoso de 17 anos chamado Renato Manfredini Júnior, morador de Brasília, fã de pós-punk, escrever uma canção que parecia uma conversa com um mapa brasileiro: “no Amazonas, no Araguaia, na Baixada Fluminense, Mato Grosso, Minas Gerais e Nordeste”, mas explodia em um refrão se perguntando o que era tudo aquilo, corrupção e constituição em uma frase: “Brasil, que país é esse?”. A frase da canção se tornaria ícone da juventude nos anos finais da redemocratização, quando em 1987 Manfredini já havia se tornado Renato Russo e a nação buscava se compreender, cantando seus versos.
Nessa época, todas as canções de alguma forma abordavam esse lugar chamado Brasil. O rock era comportamento. O primeiro Rock in Rio trazia ao país as grandes bandas: Iron Maiden, Queen, Nina Hagen, Rod Stewart,
Scorpions, AC/DC, Yes e as promessas do rock nacional. A juventude não era mais comportada como fora o rock da Jovem Guarda, ou diplomática como na Bossa Nova. O Rock nacional era visceral, sexy e cantava sobre ser jovem em um país de terceiro mundo.
Cada país fabricava e fabrica seu rock. Na Argentina da década de 1980, o rock buscava respostas para a cruel ditadura, que desaparecera com 30 mil pessoas. Os Abuelos de La Nada, uma das mais importantes bandas argentinas, em uma feliz canção New Wave, Lunes por La Madrugada, descrevia uma sensação de busca: “Noches de melancolía. Pateando en una ciudad vacía. En la oscuridad te busco a vos”. Em 1980, a Argentina não buscava mais sobreviventes, mas filhos roubados dos pais nos porões da ditadura.
Nos Estados Unidos da Era Regan (1980-1991), centro do capitalismo mundial, o rock não tinha mais o tom político da força jovem dos sixties. Era cínico, evasivo. A cocaína de Escobar inundava os Estados Unidos, e a violência passou a ser o tema. Filmes passavam o clima dos 1980: de Scarface a Robocop, passando por Terminator, Rambo ou Lethal Weapon. A América não era mais a mesma, e a música falava sobre isso.
As canções de rock começavam a descrever a sensação de estar perdido. Bruce Springsteen em 1984 canta Made in USA, uma crítica ao reaganismo, que é usada cinicamente na própria campanha do presidente como um novo hino aos valores americanos. Mas a letra é sobre um veterano de guerra desempregado que tem remorsos por ter matado na Guerra do Vietnã, em síntese um homem perdido: “I’m ten years burning down the road”.
Os EUA tornam-se um país violento, e uma banda de Los Angeles sintetizava o desconforto. Se nos anos 1950 Los Angeles tinha cercas brancas e famílias felizes, agora a cidade era uma selva, com traficantes, assaltos e roubos. O disco Appetite For Destruction (1987) tinha uma capa ofensiva, que nenhuma banda de rock, por mais perigosa que fosse, teria pensado nas décadas anteriores: um robô violentara uma vendedora de calçada e seria destruído por outro robô. Era o apetite da destruição. Guns N’ Roses abre seu álbum de estreia com um grito de dor, que pode ser uma sirene, e em um dos versos temos: “You learn to live like an animal in the jungle where we play”.
As canções tornaram-se pesadas, e os rockeiros ícones, da moda, do consumo e do comportamento. Os estúdios tentavam encontrar a próxima megabanda entre centenas de jovens que tocam em garagens. A MTV vende rock, e o rock vende na MTV.
No começo dos 1990, as canções começaram a mudar. É o momento de revisão da tempestade de consumo. Nirvana será a metacrítica da cultura jovem. Kurt Cobain sintetiza em si mesmo toda uma geração. A história do rock passaria a não ser somente a história da música, mas a história das overdoses. Nessa época, os rockeiros são mais importantes que presidentes. Em 1995, os Rolling Stones pisam na Argentina para continuar sua turnê americana. O presidente Carlos Menem convida a banda para conhecer a residência oficial e tira uma foto lendária: os Stones parecem em parte felizes e em parte constrangidos.
O novo século trará uma pulverização dos ícones e estilos. Todos começaram a reivindicar seu próprio rock. As gravações são democratizadas. Centenas de bandas à disposição da pirataria. Várias vozes reconstroem o rock, que para alguns é declarado morto e para outros está perdido.
Na próxima coluna, começarei a contar um pouco das canções de rock em uma abordagem social da música. Não é uma história do rock, mas uma história das canções que fizeram e fazem o rock. Espero que gostem.
Um abraço e até a próxima.
Mateus Dagios é historiador e tem um canal no youtube – Conjunção Bookiana – sobre livros e história. https://youtube.com/@conjuncaobookiana2064